Ex-presidente espera que petista não 'volte com fundamentalismos'

SC São Paulo (SP) 15/10/2019 Entrevista com o ex-presidente da Republica , Fernando Henrique Cardoso. Foto: Edilson Dantas / Agencia O Globo Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo
Fernando Henrique Cardoso não vê em Jair
Bolsonaro ou Lula capacidade de apaziguar a tensão política brasileira, mas que
torce para que o petista retome o perfil conciliador. Em entrevista à coluna, o
ex-presidente afirmou estar disposto a sentar para dialogar com o petista, caso
Lula o procure.
Na avaliação do tucano, a soltura de Lula pode aumentar ainda mais a
polarização e, por isso, espera que o petista não "volte com
fundamentalismos".
FHC falou ainda sobre a defesa do AI-5 feita por Eduardo Bolsonaro , Luciano Huck e política externa.
Leia a entrevista.
Qual é a expectativa para o segundo ano de governo de Jair Bolsonaro?
Que ele mude. Em que sentido? Em Relações Exteriores, que o Brasil tem
perdido espaço, na questão educacional, que não se sabe qual o rumo. Os
ministros têm de ter um pouco mais de direção para que as pessoas sintam para
que lado as coisas vão. Que a economia retome. Por enquanto, nada. O governo
tem de inspirar confiança. E que não seja tão polarizante e não provoque tanta
distensão. A função de quem está no governo é aumentar a coesão social, não
fragmentar o país. Buscar o rumo e a coesão do país. Isso aconteceu até agora?
Não. Até agora, o contrário. Não só a polarização é grande, como talvez aumente
agora com a libertação do Lula. Não depende só do Lula, depende do outro.
Lula e Bolsonaro são capazes de um movimento de apaziguamento?
Lula e Bolsonaro são capazes de um movimento de apaziguamento?
Não é do espírito de nenhum dos dois. Nunca vi Bolsonaro na vida. Não o
conheço, não sei como é seu temperamento. Conheço o Lula. O Lula é verbalmente
de contestação, porque é político. É uma pessoa tática, sente o momento e vai,
mas não é que tenha na alma a vontade de esmagar o outro. Ele esmaga quem está
mais perto.
Lula saiu da prisão conciliador ou incendiário?
Lula saiu da prisão conciliador ou incendiário?
O Lula não é incendiário . Ele é verbalmente
incendiário, porque é do poder. Como estilo político e humano, não é a
tendência do Lula ser incendiário. As pessoas às vezes o pintam de guerra, mas
não é assim. Não conheço Bolsonaro e não quero avançar como ele é. Visto de
fora, dá a impressão de que ele é mais guerreiro, mais intransigente, acredita
em uns fantasmas. O Lula acredita nele.
Ele saiu da cadeia maior ou menor do que entrou?
Ele saiu da cadeia maior ou menor do que entrou?
Depende do que fizer agora. Cadeia é cadeia, sempre desagradável. Não
acho que a retórica que ele está usando, de que é perseguido político,
corresponda à realidade. Não nego que haja sentimento político contra ele, como
contra vários outros, mas o juiz tem de ter base para julgar. Entendo essa
retórica como tática política. Mas é perigoso, porque não sei quais serão as
consequências da decisão do tribunal. Se forem as que estão sendo ditas, vai
ter que libertar muita gente. Voltará uma sensação de impunidade, o que não é
bom. Não gosto de ver pessoas que conheço punidas, mas a impunidade é mais
grave do que isso. Vamos ver como o Lula vai agir. Não tem direitos políticos,
mas certamente vai ter influência.
Qual deve ser o papel de Lula até a eleição de 2022?
Qual deve ser o papel de Lula até a eleição de 2022?
O papel de quem é líder de um partido. Vai tentar influenciar, é normal.
Quando foi presidente, não teve um papel revolucionário. Atacava quando
necessário, mas não era um homem de fundamentalismos. Espero que não volte com
fundamentalismos. Isso é ruim para o Brasil.
Sentaria com ele para conversar?
Sentaria com ele para conversar?
Em toda a vida, sentei com todo mundo que me procura. Não vou procurar
ninguém, já passei dessa época. Não tenho razão para procurá-lo, mas sempre
estive disposto a conversar. Mas ele nunca quis — quando ele e eu fomos
presidentes — ter uma conversa verdadeira comigo. Não vou dizer que eu não
tenha vontade de falar com Lula, mas não vejo que seja construtivo, porque ele não
vai mudar. Mas sou favorável ao diálogo. Nunca conversei com Bolsonaro e não
acho necessário, porque ele tem o poder na mão e, da minha parte, seria
desnecessário procurar quem está no poder. O Lula como não está no poder, se
quiser conversar, avise.
Como avalia a fala de Eduardo Bolsonaro sobre o Ato Institucional nº 5?
Como avalia a fala de Eduardo Bolsonaro sobre o Ato Institucional nº 5?
Trágica. Provavelmente, falou porque está habituado a falar, não tinha
tanto peso ao que disse, mas disse. Na política, palavra pesa. Como considero
completamente inaceitável ficar elogiando quem foi torturador no passado. Isso
vai contra direitos humanos, democracia. Não posso aceitar isso. Sou
fundamentalmente democrático. Aceito a variação, mas não a violência como
instrumento de poder. Um erro inaceitável.
Até que ponto declarações como a do AI-5 podem se tornar uma ameaça real à democracia?
Até que ponto declarações como a do AI-5 podem se tornar uma ameaça real à democracia?
Não acho que acho que seja uma ameaça real, porque as circunstâncias
mudaram muito, mas não acho conveniente pessoas que exercem algum papel na
política repetirem. Enaltecer o que não é democrático é negativo. Mesmo que não
tenha efeitos na prática, mas podem ter. Tem que ser combatido.
A solução para Bolsonaro é criar um novo partido?
A solução para Bolsonaro é criar um novo partido?
Isso é problema dele. Ele não tem partido. Tem um partido que não sei o
que significa. Quando o PT nasceu, pensei: "Vão criar outro partido".
O PT foi virando outra coisa, mas não perdeu alguma raiz. Os partidos no Brasil
estão fragmentados, não têm coerência. Sempre tiveram pouco, o PT foi um dos
que mais teve. O PSDB nunca teve muita coerência, mais ou menos. Quando digo
que o PSL não é um partido equivalente ao PSDB ou PT, não estou dizendo que não
se deva hostilizar os partidos. Os partidos vão voltar a ser o que eram no
passado? Não creio. Houve uma certa rigidez da vida política que separou
bastante os chamados políticos profissionais da vida cotidiana. Há esse
sentimento. Isso facilita pessoas sem raízes. Acho arriscado. Pessoas sem raiz
vão para cá, para lá, para lugar nenhum.
Eleição na Argentina, renúncia de Evo Morales e protestos no Chile. O que o cenário latino-americano tem sinalizado ao Brasil?
Eleição na Argentina, renúncia de Evo Morales e protestos no Chile. O que o cenário latino-americano tem sinalizado ao Brasil?
Não é por causa da esquerda, é outra razão. O que existe é um mal-estar,
de que as medidas do governo não atendem aos interesses das pessoas. As pessoas
não sabem o que vai acontecer, têm temor que esse mundo não as inclua no futuro
e não têm uma utopia, não têm um desenho da boa sociedade, se sentem mal e
reagem. Vai ser sempre assim? Espero que não. Para que não seja assim, é
preciso medidas. Qual foi o milagre dos Estados Unidos? Um país muito
heterogêneo, com escravidão e que criou o sonho americano, e que teve uma
expansão econômica fenomenal. Deu às pessoas o sentimento de que há caminho
para mim, meu filho e meu neto, com certa mobilidade social. O Brasil viveu
vários períodos de mobilidade social também. Nesse momento, as coisas estão na
dúvida. O que vai ser o amanhã? Não se sabe.
Quem seria hoje capaz de criar um "sonho brasileiro" e dar esperança às pessoas?
Quem seria hoje capaz de criar um "sonho brasileiro" e dar esperança às pessoas?
Isso é o que é necessário. No passado, um "sonho brasileiro"
poderia soar falso, mas precisa. Por isso, a necessidade de uma coesão, de ter
um terreno comum, mesmo com diferenciação. E o que é isso? Como transformo isso
numa aspiração? Mesmo sabendo que vai ser desigual, vou ter um pedacinho maior
desse campo comum. Precisa de algo assim, uma utopia. No nosso caso, a utopia
tem de ser de mais igualdade. E por que criticamos o governo? Precisa haver um
caminho que seja aberto por quem lidera e que tenha meios para oferecer algo.
Tem que aumentar a coesão e abrir um caminho.
Bolsonaro e Lula seriam capazes de abrir esse caminho?
Bolsonaro e Lula seriam capazes de abrir esse caminho?
Bolsonaro está mostrando que não pensa assim. Discrimina, acha que há
bons e maus. O Lula, por enquanto, não falou nada, mas tende a ter uma visão...
É preciso que nesse caminho, a pessoa seja capaz de governar. O Lula
pessoalmente foi. O PT não foi. Deu no que deu. Tem que ser gente que tenha uma
certa competência. Não sou um ser de temperamento pessimista, nem acho que a
história do Brasil recomende pessimismo. É por isso, que é preciso reavivar a
confiança em nós mesmos. Precisamos de um governo, de um presidente, de um
líder, que reavive a confiança do brasileiro no Brasil. Em política, tem de
funalizar.
Então quem?
Então quem?
Por enquanto, não está claro. Sabe-se quem não simboliza. Agora, quem
simboliza tem de ser uma construção política, requer o exercício da liderança.
Em política, a palavra pesa muito. Tem que entusiasmar, tem que fazer com que
as pessoas acreditem. Dentre os que mencionou, Lula não pode ser candidato e o
Bolsonaro pode, mas vai entusiasmar uma parte, os dele, não o conjunto. Acho que
tem que transcender essa polarização. É necessário que surja uma liderança
capaz de transcender essa polarização.
Quem tem mais potencial para transcender, convencer e entusiasmar o povo: Luciano Huck ou João Doria?
Quem tem mais potencial para transcender, convencer e entusiasmar o povo: Luciano Huck ou João Doria?
João Doria já convenceu algumas vezes. Ganhou. O Luciano ainda não
ganhou. Sou amigo dos dois. O Luciano tem que passar a ser líder político, o
que é diferente de ser celebridade. Ele é um celebridade, é reconhecido, trata
dos problemas do povo. O salto que vai ter de dar é outro. É mostrar que, além
disso, lidera politicamente. A política implica lados. Isso precisa ser
demonstrado a partir das eleições municipais. Não estou propondo que entre,
porque não sei qual a disposição dele, mas é importante que a pessoa saiba.
O que Huck deve fazer para se colocar como um líder político?
O que Huck deve fazer para se colocar como um líder político?
A população tem de sentir qual o caminho dele. Quais ideias dele para a
política? Toda semana no Caldeirão do Huck, ele mostra que é solidário. Ele tem
conhecimento do povo, o que é importante, não é qualquer um que tem isso. Mas
ele tem que mostrar que, com esse conhecimento, é capaz de andar nos caminhos
institucionais, Congresso, tribunais, partidos. Criar os aliados políticos.
Está tentando isso, suponho. Criar aliados, uma rede possível de implementar.
Talvez conheça mais o país do que a maioria, porque era a função dele. Ele não
tem problema nesse sentido, tem no outro: mostrar que é capaz de mexer com as
instituições. E saber que vão jogar pedra nele.
Huck tem medo de se expor?
Huck tem medo de se expor?
Não sei. Ele vai ter de se expor, não sei se tem medo. Vai mostrar
agora. Se for candidato, será exposto. Uma vez político, sua vida é devassada.
O que fez ou não fez aparece. Se não tiver convicção em si mesmo, está perdido.
Isso vale para todos.
Para uma classe, Bolsonaro criou uma utopia de Brasil sem corrupção e sem distribuição de cargos políticos. Essa utopia já morreu?
Para uma classe, Bolsonaro criou uma utopia de Brasil sem corrupção e sem distribuição de cargos políticos. Essa utopia já morreu?
Não sei. O que caiu foi a corrupção. Agora está na moda atacar a Lava
Jato. A Lava Jato historicamente teve um papel importante. Pode ter errado,
exagerado? Pode, mas tem um papel. Bolsonaro vocalizou algo que naquele momento
correspondia ao interesse da maioria. O que não corresponde é essa ideia de
quem tem inimigo para todo lado. Mas isso não é suficiente para manter uma
utopia, as pessoas precisam de uma visão de grandeza. Não se vê, eu pelo menos
não vejo. Vejo uma visão antiquada. Se mete na política de outros países. Agora
está recuando.
O que é necessário para o Brasil deslanchar em sua política externa?
O que é necessário para o Brasil deslanchar em sua política externa?
Qual nossa possível vantagem? Uma é estrutural. Estamos longe do centro
maior de poder, hoje, China e Estados Unidos. Não acho vantajoso para o Brasil
entrar em briga que não é nossa. A política que está sendo feita é uma política
que pressupõe o bem e o mal. O mundo internacional vive de relações de força e
interesse. Não temos força para entrar numa briga de cachorro grande e temos
interesse em manter relações com todos, desde que bom para nosso povo. [...]
Não convém ao Brasil como país, que o governo se manifeste contra ou a favor
sobre tudo o que acontece no mundo. Quem vai ganhar no Uruguai? Ganhe quem
ganhar, o Uruguai é nosso vizinho. Argentina mesma coisa.
Bolsonaro criticou muito a eleição na Argentina...
Bolsonaro criticou muito a eleição na Argentina...
Acho errado. Isso é problema dos argentinos. O bom para o Brasil é que
mantenhamos boas relações com toda nossa vizinhança. Pensar que o peronismo
equivale ao comunismo no passado é um erro. Não tem nada a ver.
Bolsonaro é desrespeitoso?
Bolsonaro é desrespeitoso?
Não o Bolsonaro, pessoas do governo, verbalmente se manifestam. Acho
inconveniente para os interesses do Brasil. Posso torcer para alguém, mas se eu
fosse presidente, eu não iria dizer, porque não convém ao Brasil.
Muita gente fala que o Rodrigo Maia é quem dá estabilidade para a República...
Muita gente fala que o Rodrigo Maia é quem dá estabilidade para a República...
Rodrigo Maia é uma pessoa que demonstrou uma capacidade grande de
orientar o Congresso. Não é fácil. Dou mérito. Não sei se é líder popular. Isso
é outra coisa. Ele foi capaz de assumir temas que são do Executivo. Li uma
entrevista que (diz que) ele está tomando ares de estadista e não de um
político comum.
Ele tem esse ar?
Ele tem esse ar?
Não sei. Por enquanto, não.
O que é o PSDB hoje?
O que é o PSDB hoje?
Pouco coerente com sua pretensão inicial. Não se sabe se é de esquerda,
direita ou do centro. O que é centro? Não adianta ter um centro amorfo, tem que
ter lado também. Os partidos estão sem assumir posições. O PSDB também está no
rolo geral. Pode sair? Pode, mas precisa sair. E como sai? Liderança e
candidatura. As pessoas não votam em partido, mas em pessoas.
(Por Naomi Matsui)
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